Quando menino, pelos meados da década de 60, morava no Bairro do Baú, cujas ruas não tinham calçamento, como a maioria das ruas dos “arrabaldes” de Cuiabá. Eram ruas de terra, cheias de pó, esburacadas pelas chuvas. Então, não havia sistema de transporte coletivo, como hoje se conhece. O transporte de passageiros era feito através de veículos-lotação, na maior parte das vezes, Kombis Volksvagem, ou através de alguns poucos “carros de praça” que existiam na cidade.
Eu me recordo de três “choferes de praça” que moravam nas imediações do Baú: Seu Gonçalo, que residia na Rua Vila Maria, no larguinho, vizinho da Professora Demitilde e de seu Delfino Bocó. Ao lado de onde é, hoje, o Fato – Curso Preparatório para Concursos, já na divisa com o centro da cidade. O outro, Seu Ricardo, pai do meu amigo Amauri, que morava no Beco, entre a Rua de Baixo e a Rua do Meio, perto do Hotel Baia e da Ponte de João Gomes. Limite do centro com o Bairro do Baú. Por fim, Tuca Farofa, que veio a ser nosso vizinho, na Rua Tenente Coronel Duarte, hoje, Rua Osório Duque Estrada, próximo de onde funciona o Hospital Ortopédico e de onde ficava a casa de dona Juja, a famosa cozinheira de São Benedito.
Seu Gonçalo era turrão. Não gostava de levar passageiro bairro adentro, para não sujar seu carro de praça de poeira ou lama. Se quisesse, ele fazia a corrida, mas somente até a entrada do bairro, nas imediações da Ponte de João Gomes. Seu Ricardo, apesar de um pouco ranzinza, já era mais maleável. Se a corrida fosse boa, aceitava o passageiro e se aventurava entre os buracos e poças de lama que a água de chuva espalhava pelo bairro. Tuca Farofa, como morador do bairro, não impunha restrições. Era mais pragmático e boa praça. Pagando, levava o passageiro ao bairro e ainda lhe contava boas estórias. Isso tudo eu sei de experiência própria, através das peripécias que vivi, menino e adolescente, nas andanças com meus pais, nos vai-e-vem com os amigos, ou através das histórias contadas pelos mais velhos, como o meu saudoso sogro, Anísio.
Chofer é um aportuguesamento da expressão francesa, “CHAUFFEUR”, que significa, resumidamente, condutor de veículo. Carro de Praça era como se chamava o táxi de hoje. O preço da corrida era estabelecido por acordo. O passageiro dava o local de destino e o CHOFER dizia qual era o preço a ser pago. Você podia regatear pra conseguir melhor preço, o que dependeria dos seus argumentos e da boa vontade do chofer.
Apesar das dificuldades de locomoção, a vida era boa. Você empoeirava os pés, enlameava os sapatos, sujava as roupas, mas tinha liberdade de viver. De ir e vir sem sobressaltos. Ninguém se preocupava com trombadinhas ou arrastões… que não os havia. A notícia ruim custava a chegar. Às vezes, quando chegava, já não era mais tão ruim assim. Diferente de hoje em que a notícia é capaz de chegar antes dos fatos. Virtualmente. O mundo surreal que o pintor espanhol Salvador Dali imortalizou em suas telas, modernamente ganhou contornos de realidade virtual. A internet nos aproxima da informação, mas nos distancia dos fatos. Hoje vivemos a realidade-do-faz-de-conta.
Diante das atribulações atuais, chego a sentir saudades dos tempos em que as ruas não tinham calçamento e o chofer de praça não se atrevia a entrar com o seu Ford, seu Chevrolet ou seu Simca Chambord preto nas maltratadas ruas do meu bairro… E eu tinha que caminhar, empoeirando os pés ou sujando-os de barro, para ir ao cinema ou para passear na fonte luminosa da Praça Alencastro… Naqueles tempos, tínhamos os pés no chão! Literalmente!
Consola-me, porém, o fato de que esse mesmo instrumento digital que me intimida e me lança ao mundo virtual, resgata-me do passado lembranças, fatos e informações que se projetam – registradas – na memória eletrônica dessa prodigiosa (in)consciência coletiva que alarga os horizontes da humanidade. Hoje faço as minhas corridas a bordo de um GIGABYTE, sem sair do lugar. Mas, de vez em quando, tomo um carro de praça, só pra atiçar as lembranças e exercitar os neurônios.
Maurides Celso Leite (um guri cuiabano dos anos 60, que se envereda nas modernas trilhas dos sítios da internet, recordando-se, nostálgico, dos tempos em que se aventurava nas trilhas de barro que levavam às cacimbas de água no sítio da vovó Joaninha, no Quebra-Pote).